Percussão
Percussão na Capoeira Brasileira: Ritmo, Resistência e Ancestralidade
A percussão é a pulsação vital da capoeira, elemento que estrutura sua prática, conecta passado e presente, e traduz a complexidade cultural afro-brasileira. Mais do que simples acompanhamento musical, os instrumentos percussivos da capoeira carregam significados históricos, espirituais e sociais, funcionando como veículos de comunicação, memória e resistência. Este ensaio explora o papel da percussão na capoeira, desde suas raízes africanas até suas funções contemporâneas.
1. Origens e Contexto Histórico
A percussão na capoeira tem suas raízes nas tradições musicais africanas, especialmente dos povos bantu e iorubá, trazidos ao Brasil durante o tráfico transatlântico de escravizados. Nas senzalas e quilombos, os ritmos ancestrais foram adaptados aos recursos disponíveis, dando origem a instrumentos como o berimbau, o atabaque e o pandeiro. Esses sons não apenas mantinham viva a cultura africana, mas também serviam como código de comunicação entre os escravizados, muitas vezes disfarçando mensagens de rebelião ou estratégias de fuga.
A capoeira, inicialmente proibida e perseguida por ser associada à resistência negra, utilizava a música como “camuflagem”: enquanto os senhores de engenho viam uma “dança”, os praticantes treinavam movimentos de luta. A percussão, portanto, tornou-se uma ferramenta de sobrevivência e subversão.
2. Instrumentos e Suas Funções na Roda
A bateria da capoeira é composta por instrumentos que dialogam entre si, criando camadas rítmicas que orientam o jogo. Cada um tem um papel distinto:
Berimbau
- Função: Considerado o “mestre” da roda, define o ritmo (toque) e comanda o estilo do jogo (Angola, Regional, Benguela, etc.).
- Simbolismo: Sua origem remete ao musical bow africano. O som do berimbau é associado à voz dos ancestrais, guiando os capoeiristas e invocando proteção espiritual.
- Toques clássicos: Angola (lento e ritualístico), São Bento Grande (rápido e combativo), Iúna (para demonstrações de mestria).
Atabaque
- Função: Fornece a base rítmica, sustentando o pulso do berimbau.
- Conexão espiritual: No Candomblé, o atabaque é usado para chamar os orixás. Na capoeira, reforça a ligação com o sagrado e a ancestralidade.
Pandeiro
- Função: Adiciona sincopação e variações, enriquecendo a textura musical.
- Origem: Herdado das tradições árabes e ibéricas, foi apropriado e adaptado pela cultura afro-brasileira.
Agogô e Reco-Reco
- Função: Acrescentam detalhes rítmicos e efeitos sonoros, complementando a percussão principal.

3. Ritmo e Significado: A Linguagem dos Toques
Os toques (ritmos) do berimbau não são apenas padrões musicais, mas códigos que transmitem instruções, estados de espírito e narrativas. Por exemplo:
- Toque de Angola: Lento e solene, convida à malícia e ao diálogo tático entre os jogadores.
- Toque de São Bento Grande: Acelerado, sinaliza um jogo mais agressivo, com golpes rápidos.
- Toque de Cavalaria: Históricamente alertava sobre a aproximação da polícia.
A interação entre os instrumentos cria uma polirritmia complexa, reflexo da cosmovisão africana, onde múltiplas camadas coexistem em harmonia. Essa riqueza rítmica também treina a percepção dos capoeiristas, que devem sincronizar seus movimentos à música.
4. Percussão como Resistência Cultural
Durante o período colonial e pós-abolição, a percussão foi alvo de repressão por parte das autoridades, que associaram seus ritmos à “desordem” e à identidade negra. A criminalização da capoeira (até 1930) não extinguiu a prática, graças à transmissão oral em comunidades periféricas e terreiros. A percussão manteve-se como ato de resistência, preservando:
- Memória ancestral: Os toques ecoam ritmos africanos, como o ijexá (ligado ao Candomblé) e o samba de roda.
- Coletividade: A bateria exige participação grupal, reforçando valores comunitários.
- Corpo e liberdade: O ritmo convida à ginga, movimento que simboliza a capacidade de adaptação e sobrevivência do povo negro.
5. Percussão na Capoeira Contemporânea
Hoje, a percussão continua central na capoeira, tanto em rodas tradicionais quanto em contextos globais:
- Educação: Escolas de capoeira ensinam a fabricação de instrumentos e a execução de toques, transmitindo conhecimentos históricos.
- Diáspora global: Grupos internacionais de capoeira adaptam a percussão a novos contextos, mantendo vínculos com as raízes brasileiras.
- Fusões musicais: Em apresentações, a bateria da capoeira muitas vezes se mistura a outros gêneros, como samba, maracatu e até hip-hop.
6. Conclusão: O Tambor que Nunca Silencia
A percussão na capoeira é muito mais que música: é a voz de um povo que transformou dor em arte, opressão em liberdade. Cada batida do atabaque, cada vibração do berimbau e cada chocalho do pandeiro contam histórias de luta, fé e resiliência. Nas rodas de capoeira, os instrumentos perpetuam uma herança ancestral, lembrando que, mesmo sob repressão, a cultura negra nunca deixou de ecoar — em ritmo firme, gingado e irreverente. Assim, a percussão segue sendo, nas palavras do Mestre Pastinha, “a alma da capoeira, que faz o corpo dançar e o coração bater no compasso da liberdade”.
